BigMax Posted 1 hour ago Posted 1 hour ago A Mandinga do Dia Seu João puxou mais uma tragada do cigarro de palha, olhou o horizonte como quem decifra presságios e disse: — Vou jogar, sim. Sonhei com a vaca e vou apostar no grupo, na centena e no milhar. Falou do sonho com a firmeza de quem acredita que o mundo manda recados, basta saber ouvir. E João, teimoso como todo bom caboclo, achava que entendia tudo: sinal de vaca não era metáfora, era aviso. Deu de ombros, apagou o cigarro na sola da botina e partiu rumo à banca. No caminho, encontrou Zé 14 — homem miúdo, mas cheio de histórias largas. Jurava que, antes do sol nascer, vira um passarinho entrar pela janela da cozinha, bater asas três vezes e ir embora sem nem bicar o pão amanhecido. Para ele, isso era sentença: águia na certa. Já estava com o dinheiro separado no bolso, bem dobrado, como quem guarda uma promessa. Tinha o apelido de Zé 14 porque havia ganho no jogo do bicho apostando no número 14. Ele pensava que estava jogando no gato (grupo 14) devido a um erro de comunicação com o compadre Fernandinho. Indagado qual era o bicho referente ao gato, o compadre respondeu “14”. E Zé, que nunca havia jogado no bicho, foi e apostou um valor alto no número 14 — que, na verdade, corresponde à borboleta. Não é que deu 14? Ganhou porque vale o escrito; se valesse a intenção, ele teria apostado no gato. Dona Zefa, mulher já de idade, moradora da rua “do meio” — como se dizia da rua central de uma cidade tão pequena quanto a nossa — mexia a borra do café com ar cerimonioso. Ela olhou a borda da xícara, suspirou fundo e declarou: — Eu vi um cavalo aqui. A cabeça, o focinho, até o rabo... Hoje eu ganho, meu filho! Ninguém ousava duvidar da borra de café de Dona Zefa. Dizia-se que ela já tinha acertado grupo e milhar só observando a borra. Se era verdade ou lenda urbana, ninguém sabia. Mas no jogo do bicho o que vale é fé — e isso nunca faltou para Dona Zefa. Mas, naquele dia, o sinal mais comentado não vinha nem das borras, nem dos sonhos, nem do voo dos pássaros. Vinha de uma cigana que estava acampada no final da rua “do meio”. Alta, envolta num lenço vermelho que mais parecia chama viva, com pulseira, brinco e colar dourados que ela dizia ser de ouro, rodava um baralho puído entre os dedos como quem embaralha destinos. Muitos diziam que ela enxergava o futuro; outros, que inventava tudo para vender “sonhos”. Mas bastava erguer os olhos para alguém jurar que, naquele olhar escuro, havia um aviso escondido. Toninho mesmo passou por ela e ouviu: — Tudo o que sobe, desce, e hoje vai dar na cabeça. Ele parou, desconfiado. — Como é? A cigana sorriu, daquele jeito que só quem domina segredos sorri. — O bicho de hoje. A frase correu o bairro mais rápido que notícia boa. Uns disseram que era águia, outros juraram que era borboleta, galo, macaco. O povo passou parte do dia discutindo a qual bicho a cigana se referia. Teve tanta aposta no jogo do barão, que o apontador teve que repassar as apostas para não quebrar a banca. Na maioria, apostaram no macaco — e deu galo. A cigana ria e se vangloriava de ser profetisa da sorte, dizendo a todos: — Eu não falei? Eu não falei? E dizem que até gente importante se rende às mandingas. A avó do ex-prefeito de Salvador, Mário Kertész, por exemplo, tinha seu ritual infalível: enchia um copo d’água até a boca e arremessava contra a parede. Depois, todos se aproximavam para interpretar o desenho da água: se parecia chifre, era vaca; se lembrava orelha de burro, era burro. Entre os respingos, ela jurava que a sorte se revelava ali — sem erro, sem dúvida, sem medo. E quase sempre acertava. E assim o bairro seguia, cada qual com sua crença: um sonhava com bicho, outro via sinal no vento, outro jurava que cigana nunca fala à toa. No fundo, o jogo do bicho era menos aposta e mais conversa — uma forma de manter o dia interessante, de dar sentido aos acasos, de brincar com o destino. Independente do resultado, ninguém ficava triste. Pelo contrário: todos riam, juravam que entenderam mal o sinal, contavam novas histórias e prometiam que amanhã, ah, amanhã ia dar certo. Porque quem joga não vive só de ganhar — vive de acreditar. E, para quem acredita, qualquer gesto é aviso, qualquer sonho é mapa, qualquer cigana pode estar carregando o segredo da sorte no bolso do vestido. E só ganha quem joga. E quem joga sabe: só vale o escrito. E assim a vida segue. 1
Sphgf Posted 1 hour ago Posted 1 hour ago Bom dia, vale mágica também ... Mágica disponível em: Sds, Sphgf 1
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